Um câncer chamado Violência Contra Mulher

Março: Mês da Mulher

Estamos publicando uma série de reportagens, artigos, fatos e curiosidades sobre o papel da mulher nesse mês de março, mês da mulher apesar de ser todos os dias Dia das Mulheres. O assunto deste post é delicado, mas precisa sempre ser falado, discutido e principalmente combatido: a violência contra as mulheres. Que não deixa de ser uma violência contra a sociedade.

A violência contra a mulher é todo ato lesivo que resulte em dano físico, psicológico, sexual, patrimonial, que tenha por motivação principal o gênero, ou seja, é praticado contra mulheres expressamente pelo fato de serem mulheres.

O Brasil teve 1.890 homicídios dolosos de mulheres no primeiro semestre de 2020 (uma alta de 2% em relação ao mesmo período de 2019)

A violência contra a mulher pode ser praticada no âmbito da vida privada em ações individuais, exemplos disso são:

  • o assédio
  • a violência doméstica
  • o estupro
  • feminicídio
  • a violência obstétrica

No entanto, a violência contra a mulher também pode ser praticada como ação coletiva, é o caso, por exemplo, de políticas estatais de mutilação genital feminina ainda hoje praticada em alguns lugares. A ação coletiva de violência também pode ser praticada por organizações criminosas, como a rede de tráfico de mulheres para prostituição forçada.

História da violência contra a mulher

A violência de gênero, não só enquanto ato físico, mas simbólico de desvalorização e subjugação social da mulher, é um fenômeno tão antigo quanto a própria humanidade. Embora se ouça falar de sociedades (lendárias ou não) que eram lideradas por mulheres, a ampla maioria das civilizações foi caracterizada por modelos de poder e liderança masculinos.

Na literatura feminista e mesmo na literatura das ciências sociais, esse fenômeno é definido nas inúmeras abordagens do conceito de patriarcado. Carole Patman (1988), por exemplo, apontou que o patriarcado é um sistema de poder parecido com o escravismo.

Isso porque no modelo social patriarcal não existe uma regulação pública sobre a esfera de vida privada, por isso, os desequilíbrios de poder no ambiente doméstico não são passíveis de normatização ou fiscalização pela esfera política. Isso permite que esse modelo seja inteiramente sujeito à vontade e ao arbítrio de quem possui o poderio econômico da esfera familiar, o senhor.

Exemplos de práticas do modelo patriarcal são a obrigatoriedade da mulher manter relações sexuais com seu marido a despeito da sua própria vontade, a “legítima defesa da honra masculina”, que por muito tempo foi legal e socialmente aceita.

No Brasil o patriarcalismo desenvolveu-se a partir da colonização. As grandes extensões de terra administradas por um chefe de família a quem se subordinavam todos, escravos e livres, que estivessem nos limites territoriais do seu domínio. O patriarca, grande proprietário de terras, chefiava uma família estendida, composta desde parentes consanguíneos até apadrinhados, e cada clã funcionava de forma autossuficiente e independente dos outros.

Nesse contexto, como aponta Nísia Floresta, as mulheres eram privadas do acesso à educação e à cidadania política. Além disso eram extremamente reprimidas em sua sexualidade, consideradas irracionais e incapazes, controladas em tudo.

A educadora, intelectual e ativista Nísia Floresta (1810-1885) foi pioneira na defesa do acesso de mulheres brasileiras à educação formal.A educadora, intelectual e ativista Nísia Floresta (1810-1885) foi pioneira na defesa do acesso de mulheres brasileiras à educação formal.

O processo de urbanização transformou e ressignificou a dominação doméstica:

  • até 1827, mulheres não podiam frequentar escolas básicas;
  • até 1879, mulheres não podiam ingressar no Ensino Superior;
  • até 1932, mulheres não podiam votar;
  • até 1962, mulheres casadas precisavam de autorização do marido para viajar, abrir conta bancária, ter estabelecimento comercial, trabalhar e receber herança;
  • até 1983, mulheres eram impedidas de praticar esportes considerados masculinos, como o futebol.

A ampliação mais abrangente de direitos das mulheres no Brasil ocorreu somente com a Constituição de 1988.

A questão da violência doméstica passou a ser considerada de maneira mais consistente na esfera pública brasileira por meio da criação de conselhos, secretarias de governo, centros de defesa e políticas públicas específicas, já na década de 1980. A primeira Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher (DEAM) foi criada em 1985, em São Paulo, e a principal lei para prevenção e punição da violência doméstica é ainda mais recente, a Lei Maria da Penha, sancionada em 2006.

Principais causas da violência contra a mulher

A violência contra a mulher tem como origem a construção desigual do lugar das mulheres e dos homens nas mais diversas sociedades. Portanto, a desigualdade de gênero é a base de onde todas as formas de violência e privação contra mulheres estruturam-se, legitimam-se e perpetuam-se.

A desigualdade de gênero é uma relação de assimetria de poder em que os papéis sociais, o repertório de comportamentos, a liberdade sexual, as possibilidades de escolha de vida, as posições de liderança, a gama de escolhas profissionais são restringidas para o gênero feminino em comparação ao masculino.

As causas, portanto, são estruturais, históricas, político-institucionais e culturais. O papel da mulher foi por muito tempo limitado ao ambiente doméstico, que, por sua vez, era uma propriedade de domínio particular que não estava sujeita à mesma legislação dos ambientes públicos.

Sendo assim, a própria mulher era enxergada como uma propriedade particular, sem direito à vontade própria e sem direito à cidadania forjada nos espaços públicos, não à toa o sufrágio feminino e os direitos civis para mulheres são conquistas recentes em muitos países e ainda não completamente efetivadas em nenhum lugar do mundo.

As situações individuais e cotidianas, como sofrer assédio de rua, ter o comportamento vigiado e controlado, não poder usar certas roupas, ser alvo de ciúme, reprimir a própria sexualidade, são sintomas, e não causas, de violações mais dramáticas, como o estupro e o feminicídio.

A violência doméstica não é exclusivamente fruto de um infortúnio pessoal, de uma má escolha, de azar. Ela tem bases socioculturais mais profundas, inclusive as mulheres que rompem a barreira do silêncio e decidem denunciar ou buscar por justiça sentem com muito mais força a reação da estrutura de desigualdade de gênero no desencorajamento, na suspeita lançada sobre a vítima ao invés do agressor.

A causa estruturante, que é a desigualdade de gênero, é agravada por outros fatores que também potencializam a vulnerabilidade à violência, tais como a pobreza, a xenofobia e o racismo. Embora a violência de gênero atinja todas as mulheres, ela se combina com outros fatores e é sentida de maneira mais dura por mulheres pobres, refugiadas e negras.

Tipos de violência contra a mulher

De acordo com a tipificação da Lei Maria da Penha, Lei nº 11.340/2006, são cinco modalidades de violência contra a mulher:

  • Violência física: qualquer ação que ofenda a integridade ou saúde corporal.
  • Violência psicológica: qualquer ação que cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação, como:
                        – constrangimento
                        – humilhação
                        – ridicularização
                        – isolamento
                        – perseguição
                        – chantagem
                        – controle etc.
  • Violência sexual: qualquer ação que limite o exercício dos direitos sexuais ou reprodutivos, como:
                        – coação a presenciar ou participar de relação sexual indesejada
                        – impedimento do uso de método contraceptivo
                        – indução ao aborto ou à prostituição etc.
  • Violência patrimonial: qualquer ação que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, bens, recursos, documentos pessoais, instrumentos de trabalho etc.
  • Violência moral: qualquer ação que configure calúnia, injúria ou difamação.

Violência contra a mulher no Brasil

O Brasil tornou-se referência mundial com a Lei Maria da Penha, de 2006, que, além de propor penas mais duras para agressores, também estabelece medidas de proteção às mulheres e medidas educativas de prevenção com vistas a melhorar a relação entre homens e mulheres. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2018 foram aplicadas cerca de 400.000 medidas protetivas.

Os casos em que a medida protetiva é insuficiente para impedir o feminicídio são percentualmente pequenos, portanto, esse é um mecanismo eficaz de proteção a mulheres. Ainda de acordo com o CNJ, correm na Justiça brasileira mais de 1 milhão de processos relacionados à Lei Maria da Penha.

Maria da Penha sobreviveu a duas tentativas de feminicídio, ficou paraplégica e lutou 19 anos por justiça sem que seu agressor fosse punido. [1]Maria da Penha sobreviveu a duas tentativas de feminicídio, ficou paraplégica e lutou 19 anos por justiça sem que seu agressor fosse punido. [1]

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2018, a maioria das vítimas de feminicídio foram mulheres, negras, com baixa escolaridade e idade entre 30 e 39 anos, sendo que:

  • 61% eram negras;
  • 70,7% haviam cursado somente o Ensino Fundamental;
  • 76,5% tinham entre 20 e 49 anos.

O panorama apresentado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública é alarmante:

  • 1.206 feminicídios
  • 263.067 casos de violência corporal dolosa
  • 66.041 estupros

As três modalidades de violência contra a mulher são cometidas majoritariamente por homens próximos, da convivência familiar.

Lembre-se de que falamos dos casos notificados. Essas estatísticas significam que, a cada 7 horas, uma mulher é assassinada no Brasil, a cada 2 minutos, há um registro de lesão corporal. Ocorrem 180 estupros por dia no Brasil, mais da metade deles contra meninas menores de 13 anos.

Atlas da Violência, de 2019, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que num intervalo de 10 anos, entre 2007 e 2017, o feminicídio praticado no Brasil aumentou 30,7%.

Outro levantamento feito pelo Instituto DataSenado, Pesquisa Nacional sobre Violência Doméstica e Familiar, revela uma tendência de mudança no perfil do agressor. Entre 2011 e 2019, a violência contra mulheres foi praticada em maior percentual pelo atual companheiro, porém, esse perfil demonstrou, nesse intervalo de tempo, uma inclinação à queda. Em 2011, 69% das agressões foram praticadas pelo atual companheiro, em 2019, esse percentual foi de 41%.

Já o número de agressões cometidas por ex-companheiros cresceu, em 2011, eles respondiam por 13% dos casos de violência doméstica, em 2019, eram 39%, tecnicamente empatados com o companheiro atual.

O Brasil teve um aumento de 2% no número de mulheres assassinadas no primeiro semestre deste ano (2021) em comparação com o mesmo período do ano passado. Os casos de feminicídio também subiram.

Consequências da violência contra a mulher

A violência contra a mulher é uma das principais formas de violação de Direitos Humanos hoje no mundo. É um tipo de violência que pode acometer mulheres em diferentes clivagens etárias, econômicas, étnicas, geográficas etc. A ameaça iminente e mesmo potencial de sofrer essa forma de violência restringe as liberdades civis das mulheres e limita suas possibilidades de contribuição econômica, política e social para o desenvolvimento de suas comunidades.

A violência contra a mulher bem como todas as formas de violência sobrecarregam sistemas de saúde dos países. Mulheres que sofrem violência são mais propensas a necessitar de serviços de saúde do que mulheres que não sofrem violência, e, em caso de danos permanentes à integridade física e à saúde mental, elas necessitam de tratamento continuado.

Pesquisa realizada no âmbito da área da saúde aponta que entre as principais consequências sofridas pelas mulheres que passam por situação de violência, estão|1|: “sentimentos de aniquilação, tristeza, desânimo, solidão, estresse, baixa autoestima, incapacidade, impotência, ódio e inutilidade”. Entre as doenças que são desenvolvidas, estão:

Mudanças comportamentais, como:

  • insegurança no trabalho
  • dificuldade de relacionamento familiar
  • dificuldades sexuais e obstétricas
  • desenvolvimento do hábito de fumar
  • maior propensão a acidentes

Portanto, as consequências da violência contra mulheres são multidimensionais e afetam desde o âmbito familiar até o mercado de trabalho e a saúde pública.

O Brasil teve um aumento de 2% no número de mulheres assassinadas no primeiro semestre deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado. Os casos de feminicídio também subiram. Em contrapartida, os registros de outros crimes relacionados à violência contra a mulher, como agressões e estupros, caíram no país. É o que mostra um levantamento exclusivo feito pelo G1 com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal.

Nos primeiros seis meses de 2020, 1.890 mulheres foram mortas de forma violenta em plena pandemia do novo coronavírus – um aumento de 2% em relação ao mesmo período de 2019.

O número de feminicídios, quando as mulheres são mortas pelo simples fato de serem mulheres, também teve uma leve alta. Houve 631 crimes de ódio motivados pela condição de gênero.

Já os casos de lesão corporal no contexto de violência doméstica caíram 11%, e os estupros e estupros de vulneráveis tiveram uma queda de 21% e 20%, respectivamente.

O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A alta nas mortes segue a tendência registrada em todo o país no primeiro semestre deste ano. O percentual de homens mortos, porém, é um pouco superior. Dados do Monitor da Violência apontam que os assassinatos cresceram 6% de janeiro a junho, interrompendo as quedas recordes de mortes violentas no Brasil nos últimos dois anos.

Chama a atenção que o aumento de mortes neste ano aconteceu mesmo durante a pandemia do novo coronavírus, que fez com que estados adotassem diversas medidas de isolamento social. Ou seja, houve alta na violência mesmo com menos pessoas nas ruas.

A queda nos registros de lesões corporais e estupros, por sua vez, impressiona, já que era esperada uma alta com o confinamento. Especialistas afirmam, porém, que se trata de uma subnotificação, isto é, menos denúncias foram feitas em razão das dificuldades impostas pela pandemia. Governos de estados como Acre e Sergipe reforçam que os números estão, de fato, subestimados.

Os dados revelam que:

  • o Brasil teve 1.890 homicídios dolosos de mulheres no primeiro semestre de 2020 (uma alta de 2% em relação ao mesmo período de 2019)
  • do total, 631 foram feminicídios, número também maior que o registrado no primeiro semestre do ano passado
  • 14 estados tiveram alta no número de homicídios de mulheres
  • 11 estados contabilizaram mais vítimas de feminicídios de um ano para o outro
  • Rondônia é o estado com a maior alta (255%) e o maior índice de homicídios de mulheres: 4,4 a cada 100 mil
  • Acre é o estado com a maior alta (167%) e a maior taxa de feminicídios: 1,8 a cada 100 mil
  • o país teve 119.546 casos de lesão corporal dolosa em decorrência de violência doméstica (11% a menos que no primeiro semestre de 2019)
  • houve o registro de 9.310 estupros (uma redução de 21% em um ano)
  • foram 13.379 estupros de vulnerável (uma queda de 20% no indicador de um ano para o outro)
  • Pará tem a maior alta de casos de lesão corporal (46%) e o Mato Grosso, a maior taxa (259 a cada 100 mil)
  • Rondônia é o único estado do país com alta no número de estupros
Brasil registra aumento de homicídios de mulheres no 1º semestre — Foto: Juliane Monteiro/G1

Brasil registra aumento de homicídios de mulheres no 1º semestre — Foto: Juliane Monteiro/G1

Pandemia e subnotificação

Segundo especialistas consultadas pelo G1, os registros das mortes e dos outros crimes não letais, como agressões e estupros, devem ser analisados de formas distintas. Isso porque as formas como esses registros são feitos diferem bastante.

Segundo a pesquisadora da Universidade de São Paulo Jackeline Romio, os registros de mortes são mais confiáveis porque passam por um “duplo registro”: são contabilizados nas delegacias e nos sistemas de segurança pública, bem como nos hospitais e nos dados de saúde.

“Por isso, ela é mais registrada que outros tipos de crime e acaba se tornando o próprio indicador de violência na sociedade”, diz Romio.

Valéria Scarance, promotora de Justiça especializada em gênero e enfrentamento à violência contra a mulher, concorda. “Não há subnotificação de morte de mulheres. Mortes são mortes, ainda que não registradas como feminicídio. Por isso, os índices de assassinatos de mulheres representam um importante indicador da evolução da violência de gênero no país”, diz.

Já as lesões corporais e os estupros dependem das denúncias das próprias mulheres.

“O problema da subnotificação é um problema grave para os crimes não letais, porque depende da iniciativa da vítima. E, muitas vezes, as pessoas sofrem a violência e preferem resolver o problema de outra maneira, e não por meio da via institucional”, diz Ana Paula Portella, socióloga e consultora, com doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco.

Assim, segundo as especialistas, a queda nos indicadores desses crimes não letais não quer dizer que houve menos violência contra a mulher durante o primeiro semestre, mas, sim, que houve muita subnotificação.

Uma das principais evidências está no fato de que os homicídios dolosos de mulheres cresceram no mesmo período.

“O homicídio é a ‘ponta’ da violência. Então, quando você vê que os homicídios aumentaram, espera-se que outros tipos de violência, que são o processo até essa morte, também tenham aumentado”, diz Jackeline Romio.

A pesquisadora afirma que são diversos fatores por trás da subnotificação.

“A gente está em um contexto de pandemia e fechamento parcial dos serviços públicos que resultam em uma barreira institucional para que a mulher consiga fazer essas queixas e denúncias. Tem a ver também com transporte, com o funcionamento das instituições e dos próprios fóruns e da Justiça”, afirma a pesquisadora.

“As instituições fecharam, mas as ocorrências continuam. Isso causa subnotificação e gera esse ‘delay’ [atraso, demora] entre o número oficial e a realidade vivida pelas mulheres”, diz Jackeline Romio, pesquisadora da USP.

“Este cenário atinge ainda mais gravemente as milhares de mulheres brasileiras em situação de violência doméstica, que muitas vezes se veem confinadas em suas casas com seus agressores e com ainda mais dificuldade em acessar os serviços de proteção e canais de denúncia da violência”, reforçam Isabela Sobral e Juliana Martins, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Assassinatos de mulheres sobem no 1º semestre no Brasil, segundo Monitor da Violência

Para Scarance, o funcionamento dos serviços é essencial para entender os indicadores. “Por que o atendimento é tão importante? Em regra, as mulheres sofrem violências mais severas quando não rompem o silêncio ou não conseguem atendimento adequado e desistem. Assim, se há uma rede estruturada que permite à mulher falar e ser acolhida, as mortes diminuem”, diz.

Romio afirma, porém, que, de forma geral, as instituições públicas não conseguiram adaptar os serviços às novas realidades de pandemia e isolamento social, que passaram a exigir atendimentos digitais.

E, mesmo que os serviços tenham oferecido atendimento digital, Romio lembra que o acesso à internet não é universal no país. “Isso prejudica ainda mais as mulheres pobres, negras, de periferias e regiões afastadas”, diz.

Além disso, as especialistas afirmam que a quarentena conseguiu isolar ainda mais as mulheres em situação vulnerável.

“O agressor está em casa, então é muito difícil você procurar ajuda quando o cara que agride está do seu lado. Então, se ele desconfiar que você está procurando ajuda, é possível que ele se torne mais violento e que você venha sofrer novas agressões”, diz Portella.

“Eu arriscaria dizer que essa redução pode se dever principalmente a essa dificuldade de chegar às instituições de apoio, aos locais onde as mulheres poderiam conseguir ajuda”, diz Ana Paula Portella.

Por isso, segundo Romio, “o subregistro é uma realidade”. “Se tem todo esse diagnóstico de dificuldades e aumento de óbitos, tem evidência de que esses crimes foram subnotificados pela falta de denúncias e pelo impedimento institucional”, afirma.

“Estratégias têm que ser pensadas para que isso possa acontecer de forma democrática, não só para mulheres de classe média e alta, mas também para mulheres pobres, sem internet.”

Casos de violência contra a mulher tiveram queda durante a pandemia — Foto: Juliane Monteiro/G1

Casos de violência contra a mulher tiveram queda durante a pandemia — Foto: Juliane Monteiro/G1

Mesmo com queda, números são altos

O levantamento do G1 aponta que, mesmo com menos registros que no ano passado, o número de mulheres vítimas de estupros e de agressões em casa é alto.

Foram 119.546 registros de lesão corporal em contexto de violência doméstica no primeiro semestre deste ano. A queda em relação ao mesmo período do ano passado é de 11%, mas ainda são, em média, 664 mulheres agredidas por seus companheiros dentro de casa por dia.

O mesmo acontece com os casos de estupro e estupro de vulnerável. A queda dos registros de estupro foi de 21%, já que o número passou de 11.812 no ano passado para 9.310 neste ano. A redução de estupro de vulnerável foi de 20% (passou de 16.805 para 13.379).

Mesmo assim, foram registrados 126 casos de estupro e estupro de vulnerável, em média, por dia no primeiro semestre deste ano.

“Sabemos que uma parte significativa dos estupros ocorre no ambiente doméstico e diante da suspensão de diversas atividades, como as escolares, por exemplo, o período de convivência entre autores e vítimas aumentou. Além disso, a presença constante dos autores pode constranger a comunicação do crime às autoridades”, dizem Giane Silvestre, Sofia de Carvalho e Debora Piccirillo, do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

Mesmo com queda, número de casos de violência contra a mulher é expressivo — Foto: Alexas_Fotos/Creative Commons

Violências desiguais

As especialistas também destacam o fato de que os indicadores não seguem as mesmas tendências de altas e baixas de forma homogênea em todo o país.

Mesmo com queda nacional nos registros de lesão corporal, por exemplo, seis estados tiveram alta de casos no primeiro semestre. A mais acentuada foi a do Pará, que teve 1.827 casos em 2019 e 2.674 neste ano, ou seja, 847 registros a mais (46,4%).

A Secretaria de Segurança Pública do estado diz que “houve aumento da violência doméstica em todo o país, em especial pelo isolamento social decorrente da pandemia da Covid-19”, mas que mantém canais para atender as mulheres vítimas de violência, como o aplicativo SOS Maria da Penha.

A pasta diz que ampliou os canais de denúncias anônimas e que aumentou o número de servidores no Centro Integrado de Operações (CIOP) para atender as ocorrências de emergência com maior rapidez.

Os indicadores também não são homogêneos nos outros crimes.

Apesar de a média nacional apontar uma alta de 2% nos homicídios de mulheres no primeiro semestre deste ano, por exemplo, 13 estados tiveram queda. A maior foi registrada em Roraima, estado que teve 18 casos no primeiro semestre de 2019 e apenas seis casos neste ano (ou seja, uma queda de 67%).

Já os outros 14 estados tiveram alta em um nível suficiente para fazer o país registrar um aumento.

Centro de Referência para Mulheres Vítimas de Violência em Rondônia; estado é destaque negativo no levantamento — Foto: Jheniffer Núbia

Centro de Referência para Mulheres Vítimas de Violência em Rondônia; estado é destaque negativo no levantamento — Foto: Jheniffer Núbia

Os dados de Rondônia são os que chamam mais atenção: 11 mulheres foram assassinadas nos primeiros seis meses do ano passado, ante 39 em 2020, em uma alta de mais de 250%.

O estado aparece também com a maior taxa de mortes de mulheres do país — ou seja, é a unidade da federação que, proporcionalmente, tem mais mulheres assassinadas. Para ter uma ideia, a taxa nacional é de 1,7 mulher morta a cada 100 mil mulheres. Já a taxa de Rondônia chega a 4,4 a cada 100 mil mulheres.

Uma dessas vítimas foi Anita Lopes, de 42 anos. Ela foi morta pelo marido, José de Souza, de 67 anos, em Ouro Preto do Oeste (RO), no dia 7 de janeiro.

Segundo o delegado Niki Locatelli, Anita queria se separar do marido, mas ele não aceitava o fim do casamento. Durante a madrugada, José pegou uma faca e golpeou a esposa no pescoço. Ela morreu na hora. Na sequência, ele se suicidou.

Anita e José estavam juntos havia 13 anos, segundo delegado — Foto: Reprodução

Anita e José estavam juntos havia 13 anos, segundo delegado — Foto: Reprodução

Apenas três dias depois, um caso semelhante aconteceu em Porto Velho com as irmãs Márcia e Carmelucia. Elas foram assassinadas pelo ex-marido de Márcia, Antônio Pereira de Carvalho, de 68 anos, também por causa do fim do relacionamento.

O crime aconteceu em um escritório de advocacia, onde Márcia e Antônio iam assinar o divórcio. Carmelucia também estava no local, acompanhando a irmã. O homem matou a mulher e a cunhada a tiros e, depois, se matou.

Rondônia também se destaca no levantamento nacional sobre estupro, pois foi o único estado do país a ter alta nos registros. Foram 136 denúncias no ano passado, contra 141 neste ano.

Em nota, o governo de Rondônia diz que “o avanço de casos aconteceu em todo o mundo”. “A convivência intensa, a tensão do momento e o próprio isolamento social, longe de parentes e amigos, são fatores decisivos para que o número de casos de violência doméstica tenham aumentado/piorado.”

O governo diz, porém, que tem promovido campanhas educativas de incentivo a denúncias via 180 e Delegacia Estadual da Mulher.

Agente penitenciário mata esposa e cunhada a tiros e comete suicídio ao assinar divórcio

Agente penitenciário mata esposa e cunhada a tiros e comete suicídio ao assinar divórcio

Alta nos feminicídios

A mesma diferença regional acontece com os feminicídios: 15 estados do país tiveram queda e um se manteve no mesmo nível do primeiro semestre do ano passado. Já os outros 11 tiveram alta, puxando a média nacional para o aumento de 1%.

Desde 9 de março de 2015, a legislação prevê penalidades mais graves para homicídios que se encaixam na definição de feminicídio – ou seja, que envolvam “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Os casos mais comuns desses assassinatos ocorrem por motivos como a separação.

A maior alta aconteceu no Acre. O número de feminicídios subiu de três no ano passado para oito neste ano, um aumento de quase 170%.

O estado também tem a maior taxa do país para mulheres mortas por feminicídio: 1,8 a cada 100 mil mulheres. É o triplo da taxa nacional, que é de 0,6 a cada 100 mil mulheres.

A chilena Karina Constanza Bobadilha Chat, de 22 anos, morta com mais de 20 facadas em fevereiro deste ano — Foto: Reprodução

A chilena Karina Constanza Bobadilha Chat, de 22 anos, morta com mais de 20 facadas em fevereiro deste ano — Foto: Reprodução

Um destes casos é o da chilena Karina Constanza Bobadilla Chat, de 22 anos, morta com mais de 20 facadas no dia 1º de fevereiro em Rio Branco. O crime ocorreu porque a vítima não aceitava um relacionamento com o suspeito. O homem foi indiciado pelo crime.

Outro caso chocou o estado. Em março deste ano, durante uma discussão, a jovem Katiane de Lima, de 23 anos, foi calada de forma brutal pelo companheiro com pelo menos três facadas, no pescoço, no braço e nas costelas. Ela estava com o filho no colo na hora que foi assassinada.

Katiane de Lima, morta pelo marido com o filho no colo — Foto: Arquivo pessoal

Katiane de Lima, morta pelo marido com o filho no colo — Foto: Arquivo pessoal

O Acre também chama a atenção porque, mesmo sendo o estado com a maior alta de feminicídios, foi o que teve a maior queda nos registros de lesões corporais em contexto de violência doméstica: 38,6%. Ou seja, segundo as especialistas, isso aponta que o estado teve uma alta subnotificação desses casos, já que eles teoricamente deviam seguir a mesma tendência das mortes.

O governo do estado afirma que, “durante o período de pandemia, as mulheres que já viviam relacionamentos abusivos ficaram mais tempo sozinhas com seu algoz, e tensões diárias, como insegurança financeira, medo de contrair o vírus, desemprego e uso de bebidas alcoólicas são alguns dos fatores que agravaram as reações violentas nos lares”.

O governo admite ainda que “a redução dos serviços da rede de atendimento presencial e a falta de informação dos canais de denúncia também são fatores que fizeram com que as vítimas fossem impedidas de pedir socorro”.

Mas ressalta que, desde 2019, faz ações em conjunto com a Justiça para proteger os direitos da mulher vítima de violência doméstica, como o aplicativo Botão da Vida, vinculado à Patrulha Maria da Penha, e a realização de campanhas informativas e educativas para divulgar a legislação e os canais de denúncia.

Campanha em Sergipe alerta para subnotificação de denúncias de violência doméstica — Foto: SSP/Reprodução

Campanha em Sergipe alerta para subnotificação de denúncias de violência doméstica — Foto: SSP/Reprodução

‘Não acreditamos em diminuição repentina’

Outro estado que também reconheceu a existência da subnotificação foi Sergipe. Os registros de estupro de vulnerável caíram 46,4% no estado no primeiro semestre deste ano, a maior diminuição do país.

Questionada sobre os indicadores, a Secretaria de Segurança Pública diz que “a redução nos registros de casos de crimes contra crianças e adolescentes não significa que tenha ocorrido uma queda na incidência dessas práticas delituosas”.

A pasta afirma que a queda dos indicadores “é uma preocupação” e que isso “ocorre em razão da subnotificação”. “As denúncias não estão chegando nas delegacias. (…) Não acreditamos numa diminuição repentina e consistente dos casos.”

A secretaria ainda cita alguns fatores que podem estar por trás da subnotificação. “Por conta das crianças estarem mais isoladas em suas residências, por não estarem ainda nas escolas, tudo isso faz com que exista essa redução de números. Então, pedimos que a sociedade se mobilize e, em caso de suspeita de algum crime ou de alguma violência contra a criança ou o adolescente, que denuncie à polícia e nos canais oficiais”, diz o governo de Sergipe.

A morte de Thais

A Região de abrangência da Rede Abraço Amarais infelizmente também já teve sua vítimas de feminicídio, sendo que um dos que mais comoveram a população da Região dos Amarais foi o assassinato da jovem Thaís Fernanda Ribeiro que havia completado 21 anos no último dia 8 de maio. . A jovem foi morta com 11 tiros pelo ex-namorado na tarde do dia 10 de maio em um imóvel na região do CDHU San Martin, em Campinas (SP). De acordo com a Polícia Civil, o autor, de 23 anos, fugiu após o crime e acabou preso na madrugada de sábado (11) após se apresentar em uma base da Polícia Militar em Santo André (SP).

A morte da jovem causou vários protestos contra a onda de feminicídio na cidade. E foi alvo de várias campanhas e uma luta assumida pelo pai da jovem Delfino Ribeiro que fez vários movimentos, inclusive adotando uma praça da região e pregando sempre contra esse tipo de violência e qualquer tipo de violência contra a mulher. O CEU da região ganhou o nome de Thais Fernanda Ribeiro e foi uma conquista e ressignificação do espaço.

Morta pelo ex-namorado, Thaís Fernanda Ribeiro completou 21 anos no último dia 8 — Foto: Arquivo pessoal

Thaís Fernanda Ribeiro

Na tarde de sábado, após o sepultamento da jovem, um grupo de moradores decidiu fazer um ato pelo fim da violência contra as mulheres, e o pai da vítima fez um relato comovente.

“Eu morri junto com a minha filha, estou passando por coisas que eu nunca esperava passar. A minha família tem que ser a última a chorar, derramar lágrimas por uma mulher, jovem. A gente tem força para lutar, cadê o povo? Só fica de braço cruzado e tudo acontecendo […] as mulheres morrendo, eu tenho mais duas filhas. Trabalho honestamente, faço o máximo para que elas sejam mulheres de verdade, dei educação, faço tudo que posso por elas, para que a vida continue, floresça, não apague”, falou entre lágrimas Delfino José Ribeiro, pai da jovem.

Pai de jovem morta com 11 tiros, em Campinas — Foto: Reprodução / EPTV

Delfino Ribeiro – Pai de jovem morta com 11 tiros, em Campinas — Foto: Reprodução / EPTV

Nota[1| NETTO, Leônidas de Albuquerque. MOURA, Maria Aparecida V. QUEIROZ, Ana Beatriz A. TYRRELL, Maria Antonieta R. BRAVO, María del Mar P. Violência contra a mulher e suas consequências.

Crédito da imagem[1] Neusa  Cadore / Commons

Por Milka de Oliveira Rezende
Professora de Sociologia REZENDE, Milka de Oliveira. “Violência contra a mulher”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/violencia-contra-a-mulher.htm. 

G1-Globo.com

Leia Também: https://www.brasildefato.com.br/2020/10/10/uma-mulher-e-morta-a-cada-nove-horas-durante-a-pandemia-no-brasil

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